sábado, 3 de dezembro de 2016

O TEU INCÊNDIO

O incendiário
vos convida
a apagar o fogo.



Não fui eu!
Não me culpe da cobra que te morde,
da febre que te consome e te argumenta,
do x que não se revela na tua equação.

Não me queira (aziago) anunciando
a vitória futura sobre os inimigos da tua lavra.

Não me esfregue ao nariz a centésima teoria
de como melhorar o dia, o café, a economia.

Não me chame para assinar o manifesto
de ser bom e funcionar mediante a tua regra de ouro.

Não chore, não grite, não se iluda!
Não tente atear ódio aos rios!
Não ouse, entredentes, Mercedes Sosa!
Não cante Let it be como se náusea fosse.

Diria um profeta, se profecia isto se dissesse:
                                         Ah, vai tomar banho!

Recua tua língua da minha calçada,
da minha varanda, da minha reza!

│Autor: Webston Moura
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sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

ENQUANTO ELA VOA

Desses guetos aí porta afora,
do fundo de pequenos quartos,
da sombra de qualquer alpendre,
do interior de um ônibus,
de todos os esconderijos,     
alguém quer poesia,
captura-la, senti-la, fazê-la



                         enquanto


ela
                              

                                  voa,


como se houvesse



        ─ e há ─



espaços em branco
(vazios sagrados)
no tumulto do mundo.

Nada pergunte.
Apenas saiba que nem todos
estão para as rações ordinárias.



Há os que amam.
Quietos que sejam, há.




│Autor: Webston Moura
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QUERO LEVEZA



Sea channel with lighthouse (1873) - Ivan Aivazovsky





A notícia suja meus olhos.
O volume, a reverberação,
a comoção, unanime e planejada,
o todos juntos, quer no ódio ou no amor,
tudo isso é política e propaganda.

Quero a leveza, a suave tatibilidade,
o olho que olha e vê, sem espasmos,
o beijo, a brisa, a lua lenta, quero-os.
E, assim, como se vai devagar um barco,
quero-me invisível ao horror geral,
à cena, ao espetáculo do presente,
ao tumulto de opinar e sofrer impugnação.

Desejo rever relâmpagos;
ter meus olhos de volta.
Desejo acordar do viva-voz,
da excelência tech que me priva
de sentir a minha carne.



│Autor: Webston Moura



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Webston Moura
, administrador deste blog, é Tecnólogo de Frutos Tropicais, poeta e cronista. Natural do Ceará, Brasil, mora no município de Russas, na região do Vale do Jaguaribe. Aprendiz de Teosofia, segue a Loja Independente de Teosofistas - LIT. Tem apreço por silêncio, música, artes plásticas, bichos e plantas. É também administrador dos blogs O Caderno Livre e Só Um Transeunte.
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quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

OS HOMENS DE BEM

De bem, os homens,
aparentemente limpos,
de terno, gravata e sapatos,
no ar-refrigerado máximo,
à sombra de dias plenos,
discursam, sérios e eloquentes,
gesticulam, aparteiam-se, cutucam-se
                                           ─ e nos traem!

De bem, os homens
nos apresentam esposas,
filhos, amigos, agregados,
tradição e honra.
Frequentam igrejas,
admoestam, instruem,
insinuam comoções,
agarram-se à bandeira
e aos bons costumes
           ─ e nos pisam.

De bem, os homens,
à direita ou à esquerda,
desejam empreender um país
em que sejamos melhores,
sorridentes, diligentes, criativos,
pacíficos, contentes, superiores
                             ─ e nos cospem.

De bem, os homens,
cavalheiros do tempo-hoje,
em toda a santidade
de condutas ilibadas
(V.Exª me respeite,
que aqui nesta casa....),
andam sobremodo a nos amar,
amantes que o são da pátria e do povo
 ─ e nos matam, devagar, bem devagar.

│Autor: Webston Moura
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PATERNIDADE AVESSA QUE NOS FAZ ÓRFÃOS

Indicativo do presente,
um samba desafinado,
um amor desacatado.



Nosso país é um labirinto:
impossível a porta.
Para um mesmo dia,
acordamos.

Nas ruas, o temor;
nada é seguro.
Temos medo da criança
que se aproxima e estende os olhos
(será que está armada?)

Contamos os corpos,
as contas, as frustrações,
as doses no bar, as cores desvairadas
com que nutrimos a incógnita Brasil.
E isto nos habita, insuportavelmente,
como um louco habita um porão,
segregado da saúde dos homens de bem.

Nosso país:
paternidade avessa que nos faz órfãos.

│Autor: Webston Moura
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segunda-feira, 28 de novembro de 2016

EM OLHOS DE ARDÓSIA

Do sertão, infinita noite:
açafroada lua ressoando azul;
o silêncio viril em que um pássaro
─ anjo de cobre, olhos de ardósia ─
enovela-se no ar (orvalho suspenso)    
e canta num triz sua voz de aviso
passo por aqui e chamo aos vivos.



Um menino anda
na estrada poeirenta.

Quem vem lá?
Um sem-nome, um vulto.
Quiçá um dia se saiba
do que lhe ocorre
entranhas adentro,
sua força medida
em cada pulso,
seus olhares ternos
para a estrelas,
e este dia ido
em olhos de ardósia.


│Autor: Webston Moura
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domingo, 27 de novembro de 2016

PESSOA

Frágil, surgia.
Vitis vinifera.
Tão forte!



Assustada, carecia de abraços.
Não queria pensar, medir, saber.

Desapareça, cabeça, desapareça!

Assim é o corpo quando só,
quando dor: todo humano.
Assim é o humano.

Assustada, queria apenas sumir-se do presente;
depositar-se, tranquila, nalguma longinquidade.

Por isso e gradual, o vinho.
E o sofá diante da janela.
(Cor de trigo, dócil, a tarde).

Silêncio.
Dentro do abraço,
fora do mundo,
desassustava-se.

E o vinho já lhe corava os olhos.
Seu corpo, lar, canção, deserto.

│Autor: Webston Moura
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sábado, 26 de novembro de 2016

Actinidia deliciosa

Perca-se o relógio
no fastio de sua rotina.



Sim, estou feliz!
Mares ressoam horizonte além.
Compreendo o abajur,
melhor dizendo,
esta luz convidativa
que esconde e revela um corpo.

Forte é o coração quando deseja.
E se os olhos acolhem
─ brisa fagueira, carruagem de filme ─,
diz-se desta alegria chamar-se amor,
termo com que se nomina o ser e o sentir
                                                     ensolarados.

É de ordem intima esta festa.
Fora do index das coisas que padecem,
é vida demorada no abrir-se de uma fenda,
um estalo revigorante de supremo sumo.

Sim, imagino que o transeunte me estranhe.
Mas, perdoa-me, que estou na praia doutro país!
E meus olhos não veem senão a exata beleza.
Não posso permitir-me sobressaltos,
tampouco assombradas hesitações.
Vou fechar os olhos e pular.

│Autor: Webston Moura
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POEMAS DE LEONAM CUNHA


poema viscoso

Observei o espectro profético:
a lesma desbrava o dia
idosamente
─ sem pressa nem medo do fim

Em verdade, em verdade vos digo:
aquele que tem ânsia de lesmas
caminha canino comigo.



jaculatória

Só tenho intenções
perto da linha do horizonte.
Assim ─ distante ─
saboreio a pretensão do crepúsculo
em ser noite.
Ser noite é muito pesado.
Eu avoo.
Minha reza
é mais ou menos:
se eu pudesse ter braços de palha,
balançaria no vento;
eu desejo conduzir tempestades.



dia-rio (parte dois)

Conheci uma mulher-noite.
Que tinha olhos de voo.
E dentes de quem quer mais.



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Poemas constantes de "Condutor de tempestades" (Sarau das Letras, 2016)






Leonam Cunha [Areia Branca, RN] publicou, em 2012, seu primeiro livro de poesia, “Gênese”, e em 2014, “Dissonante”, ambos pela Sarau das Letras. “Condutor de tempestades” é seu terceiro livro.
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sexta-feira, 25 de novembro de 2016

POEMAS DE KIKO ALVES


Âncoras

Há faróis no céu
Busco ao léu meu porto
Num mar de estrelas



O velho moinho

No salobro das pás
Sopram ventos do passado
Volteando em ponteiros
De relógios fantasmas
A girar para trás
Carreando lembranças
De antigos passageiros
E almas roídas de mar
Saudades inda vivas
Dependuradas no tempo
Serenam as tardes
E se vergam
No ranger das carcaças
Do velho moinho abandonado



Etéreo

Quando o mundo
Não mais me quiser
Vou dar no pé,
Vagar à toa.
Quando o mundo
Não mais me quiser,
Numa boa,
Vou viajar
Além do mar
E no azul do céu
Virar garoa



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Poemas constantes de "Ancoradouros" (Sarau das Letras, 2016)



Kiko Alves [Francisco Alves, Areia Branca, RN, 1955]. Formado em Engenharia Elétrica pela UFF, com mestrado nessa mesma área pela UFRN. Também poeta, compositor, letrista, cantor e ator. Ancoradouros é seu primeiro livro.

POEMAS DE PEDRO DU BOIS

1 Alugo o corpo ao personagem
e sou incorporado ao discurso plástico
da inverdade. Sou deus e demônio
personificados nas contradições. Besta
e pomba. Homem despossuído
de razões. A aparente calmaria antecede
a tormenta e a neve desce a montanha.

Sou outras gentes. Gentios
e crentes. A plateia estática na ação
do palco. O finalizar da música
no arrastar das cadeiras.


2 Ser além do personagem
o mito. História
em sua criação na apropriação
da ideia.
      A luz ilumina o palco
      com palavras
      apostas no papel.

A aposta sobrevive ao instante
da criação. A aposta se conforma
ao espaço preenchido de oportunidades.


3 Repito o texto
realizo o gesto
materializo
a palavra.

Permaneço.


4 Avesso ao comum
imortalizo
      a cena. O aplauso
      contém o ressentimento
      da realidade.

Retorno
e aprofundo
a vida
em verdades.



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Poemas constantes de "Poemas" (Projeto Passo Fundo, 2016)



NOTA DO EDITOR DO BLOG: O livro "Poemas", de Pedro Du Bois, o qual tive o prazer de fazer a apresentação, dividi-se em oito partes (secções), a saber: "Caminhar". "Iniciação ao Trabalho"; "Personagem"; "O Dia Empedrado"; "Sobre Leituras e Desentendimentos"; "Habitar", "Sob(re) o Melhor dos Mundos"; "A Indeterminação da Certeza". São dezenas de poemas, mas não estão distribuídos aleatoriamente, posto que, de conjunto em conjunto, formam uma unidade densa e complexa. O próprio título do livro, "Poemas", sugerindo o óbvio sobre o que ali se espera, é algo a se pensar no que diz respeito às sutilezas tantas, riquezas todas.  É uma poesia que nos convida a trabalhar. Os três poemas deste post constam da secção "Personagem". Sobre o autor, visite seu blog: http://pedrodubois.blogspot.com.br/.

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